Perdemos Jorge Portugal e nossa capacidade de autodefinição

“Esqueci de te falar, o Jorge Portugal deu entrada no Hospital do Estado de Salvador. Está em coma induzido, não está bem não. Acho que deu um problema no coração, que não estava conseguindo bombear. Deu parada cardíaca dentro da ambulância”, disse minha mãe, um tanto esbaforida, numa mensagem de voz pelo WhatsApp. Fiquei abalado, mas torci internamente para que fosse só um susto. Desejava que o nobre poeta voltasse logo para o aconchego da sua família.


Curiosamente, ela disse “o Jorge Portugal”, colocando o artigo definido antes do nome. Coisa não muito comum entre nós baianos. Como se, inconscientemente, tentasse destacar que não fora qualquer Jorge Portugal, mas “o Jorge Portugal”.

Alguns minutos depois um colega enviou-me o link para uma matéria do G1 Bahia confirmando o falecimento do nosso querido professor, poeta e compositor. Meus olhos marejaram imediatamente. O sentimento era de que perdemos, junto com Jorge Portugal, parte da nossa identidade. Não que ela, a identidade, tenha deixado de existir, mas poucos saberiam expressar tão bem quanto ele as dores e alegrias do que é ser baiano.

Carentes de poetas que transfigurem em palavras a identidade estadual, ficamos mais órfãos a cada dia. Perdemos outro Jorge, o Amado, João Ubaldo Ribeiro, Floriano Teixeira, Carybé e agora ficamos sem Portugal.

“A dor da gente é dor de menino acanhado, menino-bezerro pisado no curral do mundo a penar”, dizia Portugal em sua mais famosa parceria com Raimundo Sodré. A minha dor é perceber que a expressão da baianidade vai se metamorfoseando em outra coisa qualquer, muito mais palatável para o mercado de consumo. E já são poucos aqueles que ainda lutam para conservar nossas diferenças em amálgama com a unidade nacional.

Como escreveu Portugal, dessa vez numa parceria com Roberto Mendes, existem coisas que são típicas do nosso estado, do nosso jeito de ser: Pedra pisada de preto, Luso bantu sudanesa, Precipício de beleza, Reconvexa alegria, Ímã de toda utopia, Rima de toda riqueza, Tudo isso com certeza só se vê, Só se vê na Bahia. Essas idiossincrasias tão típicas da baianidade foram brilhantemente expressas por Portugal. Mas o poeta continua em sua definição daquilo que chamamos de povo baiano: Gente que tira alegria da dor, Do batecum do batente, Todas as cores de gente, Contas de todos os guias, Uma nação diferente, Toda prosa e poesia, Tudo isso finalmente só se vê, Só se vê na Bahia.

Você já foi à Bahia? Não? Então acho difícil que entenda a profundidade de tais versos.

Jorge Portugal faleceu no Hospital Geral Roberto Santos, às 20h e 15min desta segunda-feira, três de agosto de dois mil e vinte. Faria aniversário na próxima quarta-feira. Com ele vai um pedaço da Bahia, ao menos parte da nossa capacidade de autodefinição. Vá em paz, caro poeta. Sentiremos sua falta.

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